Quem contará essa História? E que História é essa? Patrimônio, Premissas e Dignidade Humana
Introdução
Ao debater sobre patrimônio, sem polarizar material e imaterial,
deparamo-nos com a liquidez, a descartabilidade das relações e situações que
não criam raízes, por vezes devido à excessividade de informações, signos e
considerações. Assim como a memória, ambos sucumbem ao contexto histórico, sua
construção orienta-se pela subjetividade elevada a padrão intelectual de pensamento
e evoluem ou regridem de acordo com a necessidade do principio dominante.
A necessidade atual poderia ser, no caso de Jundiaí, a manutenção de uma
identidade, mas o que é uma identidade jundiaiense? É preservar o Complexo
FEPASA, a Casa Rosa e um pé de uva? Se não há uma identificação clara,
definida, que se evite a transformação em um não lugar da Jundiaí indefinida.
Se há preservação, que o objeto preservado tenha uma função social, pensando o
bem coletivo e salvaguardando de forma equilibrada o direito a propriedade
privada.
No decorrer do pensar o patrimônio e a cidade, áreas preservadas devem
ser utilizadas de modo a atender demandas sociais, abrangentes. Revitalização,
dignidade, por exemplo. Diferentemente de Gentryfication,
que tem como objetivo atender a especulação imobiliária e perda de identidade
para uma percepção colonizada de identidade econômica líquida e exclusivista.
Tais dificuldades são oriundas da falta de equilíbrio entre
desenvolvimento/crescimento urbano, humanidade e natureza. Mas como aplicar
novas premissas numa sociedade capitalista que afere o lucro antes de garantir
a preservação da dignidade.
Faz-se urgente, a quebra de paradigmas em relação aos conceitos que
embasam o processo de preservação. Temos tido como interesse a priori o capital, mascarado em critérios
arquitetônicos que desde o Estado Novo tem norteado a preservação, apresentando
a “ideia de nacionalismo”, “identidade nacional”, raramente relevando outras
perspectivas sob seu discurso autorizado.
Serão essas
premissas ainda válidas? Busquemos alternativas mais humanas interligando,
renovando critérios, transformando, quebrando paradigmas. O que prevalece, a
sacralidade da integridade edificada ou a acessibilidade universal? O tijolo ou
o ser humano? Quem contará essa História?
Como se conta a História
O objetivo destas poucas palavras não é oferecer uma resposta, mas fazer
uma reflexão crítica a respeito do que consideramos importante ao debater o
tema patrimônio. Abandonemos a polaridade material/imaterial e atentemo-nos ao
valor intrínseco ao bem, às práticas e praticantes envolvidos no processo
cultural: Patrimônio.
Mas perceber valores ainda é como discutir dogmas, premissas, paradigmas
e controle através de discursos autorizados ante os agentes do processo que por
vezes são calados ou, tem à sua frente surdos intelectuais oportunos como os fanáticos
definidos pelo antropólogo Malek Chebel:
“Contudo, os crentes em geral têm o dom de permanecer surdos a formas de
pensamentos que não convém à sua fé”. (CHEBEL, 2015)
Aproveitemos essa rara oportunidade
de colocar em pauta como contaremos essa História. Será ainda como o Decreto
Lei 25/1937
Art.1º
Constitui o patrimônio artístico e histórico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico.
§1º Os bens
a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do
patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou
agrupadamente num dos 4 Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta Lei. (grifo meu),
que sistematizou e organizou o
patrimônio no Brasil e ainda referencia certas situações, colocando o
tombamento como definidor (escolhido pelo poder publico) do valor cultural do
objeto? Ou utilizaremos uma nova antiga proposta, constante na Constituição
Federal de 1988, como o artigo 216?
Art. 216.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I – as
formas de expressão;
II – os
modos de criar, fazer e viver;
III – as
criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V – os
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§1º O poder
público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação.
Assim vemos uma troca, uma inversão
na percepção do que é patrimônio; antes na busca de um nacionalismo presente as
décadas de 1930/1940, focadas em valores arquitetônicos. Na “constituição
cidadã”, teoricamente, a busca pelos valores culturais são referidos pela
sociedade e não apenas imposta a ela. Ou seja, o patrimônio é um fato social,
um processo cultural, uma construção sócio-cultural e não algum tipo de
colonização intelectual especializada pautada no interesse econômico, e de
forma, por vezes, velada negando a dignidade humana.
Exemplifiquemos o que é e como é
contada a História. Você que lê este artigo, suponho, não é favorável ao
trabalho compulsório, outra nomenclatura para escravização. Nosso país por
séculos teve sua economia alicerçada nessa imbecilidade e temos como homens de
visão barões e coronéis que, sendo proprietários de pessoas fizeram nosso país
“crescer” sobre o sangue e suor de indígenas, africanos e descendentes. E após
a tal Lei Áurea permaneceram marginalizados e lutam diariamente por
reconhecimento e direito a ter direitos.
Acredito também que você possua smartphone, desktop, notebook, tablet ou quaisquer outros dispositivos
eletrônicos e é provável que esteja lendo esse texto em algum desses
dispositivos. Pois bem, de acordo com o Índice Global de Escravidão elaborado
pela Fundação Walk Free, nosso Brasil possui por volta de 160 mil pessoas sob
trabalho análogo a escravidão. Distribuídos na produção do nosso café, do
carvão para o seu churrasquinho e na sua roupa chique para o passeio do fim de
semana. Se você possui um dos aparelhos descritos, mesmo sendo montados na Zona
Franca de Manaus ou no Distrito Industrial de Jundiaí, lembre-se que os componentes
principais são oriundos, por exemplo, da China e de Taiwan onde a legislação
trabalhista parece ter sido copiada dos nossos barões do século XVIII e XIX.
Assim como a sua roupinha chique sendo costurada por bolivianos e peruanos
trancafiados o dia todo em cubículos no bairro paulista do Brás.
De acordo com a ONG Verité e a
Fundação Walk Free, no mundo existem mais de 48 milhões de pessoas sob trabalho
análogo ou mesmo escravo. Seja na produção do seu chocolate, do seu aparelho
eletrônico, do seu tênis jogging da
sua roupa importada confeccionada em Bangladesh, Taiwan ou China. Será que
deixaremos de usar os produtos que tanto nos facilitam a vida por sermos contra
a escravidão? Nossos bisnetos contarão a História de nosso tempo
considerando-nos como heróis pelas nossas realizações ou como monstros
hipócritas que criticaram a escravização de índios, africanos e seus
descendentes; e pela não identificação com o “próximo” que habita esse e o
outro lado do globo deixaremos que sejam oprimidos e explorados até a exaustão?
Que patrimônio
nós queremos?
“Temos de
agradecer, portanto, às camadas mais pobres. Há quase duzentos anos são os
maiores guardiões do nosso patrimônio. Já é tempo de tentar retribuir-lhes o
favor, dignificando os espaços em que vivem e trabalham, sem espoliá-los.”
Carlos
Nelson Ferreira dos Santos, “Antropoteto”
No debate sobre patrimônio há
sobreposição de determinado grupo sobre outro, Por qual/is grupos o patrimônio
jundiaiense fala?
Imigrantes europeus
Homens
Mulheres
Escravizados
Migrantes
Caboclos
Indígenas
Afrodescendentes
Elite cafeeira
Ferroviários
Trabalhadores têxteis
Nós?
Assim como o Museu Histórico e
Cultural de Jundiaí, conhecido como Solar do Barão. O que podemos
superficialmente extrair de sua História?
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Crédito: Secretaria de Cultura
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É uma construção urbana típica do
século XIX (1860), construída em taipa de pilão, com jardim em estilo
neorrococó, tendo identificação com nomes científicos e procedência da maior
parte das plantas ali acondicionadas. Pertenceu a família Queiroz Telles, nome
de grande repercussão na sociedade paulista e brasileira e liderança dentro da
aristocracia cafeeira. Interessante! E quantas pessoas escravizadas serviram
nessa casa? O tombamento na década de 1970 pelo CONDEPHAAT levou em consideração
(como consta) apenas sua arquitetura? Ou também a reunião de Eloy Chaves quando
cria a sua companhia de luz? Claro que sua arquitetura possui relevância
importantíssima ao município, mas só passou a ser um fato social, um processo
cultural de identidade e formação social ao se estabelecer ali em 1982 o museu
permitindo, como define Bernard Stiegler um “materialismo espiritualista”.
Assim a percepção cultural tem um corpo: a construção, e uma alma: sua função
sócio-político-cultural.
Corpo e alma, constituição de uma
identidade não a meu ver sob um interesse econômico, mas sim sob interesses
mobilizados por ideias, crenças, afetos, influências... (em geral valores) da
população. Não engessados, mas sim passíveis de revisão, reestruturações
cognitivas, atualização constante de visão do passado para construção de um
futuro.
Para que isso ocorra é urgente que
o usuário, o fruidor, o perceptor possa ser o agente principal de criação da
ideia e essa é permeada segundo alguns componentes apresentados pelo professor
da FFLCH/USP Ulpiano Toledo de Bezerra de Meneses, que não se isolam e
agrupam-se das formas mais variadas.
Antes deve ficar claro que não pode
haver polaridade entre materialidade e imaterialidade e nem deverá ocorrer
disputas entre Valor arquitetônico e Valor Histórico, entre Valor Técnico e
Valor Social e entre Especialista e Fruidor. Mas sim a aglutinação desses
valores no Valor Cultural e sua
estruturação sobre os componentes apresentados pelo Profº Ulpiano.
Valores Cognitivos
Valores Formais
Valores Afetivos
Valores Pragmáticos
Valores Éticos
(lembre-se que não se atribui
existência isolada aos valores, apenas como referência majoritária e fácil
compreensão será explicitado um valor para cada estudo, sendo que a todos cabem
diversas complexidades)
Como exemplo em Jundiaí do que pode se atribuir Valores Cognitivos temos a casa da família Malpaga ou Casa Rosa,
motivo de tantos encontros e desencontros.
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Crédito: DPHC Jundiaí
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Podemos entendê-la como um documento, pois oferece informação de natureza
múltipla: como identificar os efeitos dos interesses no seu projeto, contexto
histórico, conceito de espaço, agentes sociais envolvidos, padrão estilístico e
mais recente o ocaso de seu “destombamento” e o risco de desaparecimento sob as
forças do interesse econômico. Além de seu imaginário social, podemos destacar
a identidade e o pertencimento, a representação de um período considerado
relevante a cidade, o que gerou até um movimento liderado por jovens pela
preservação do bem, dessa herança, características essas que revelam a presença
também do Valor Afetivo.
A respeito dos Valores Formais,
podemos citar o Museu da Companhia Paulista (Museu Ferroviário/ Museu Barão de
Mauá) ao lado da Sala dos Relógios, onde ocorreu em Agosto de 2016 o IV
Simpósio sobre Patrimônio de Jundiaí.
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Crédito: TripAdvisor
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Sua estruturação como fato social
não atribuo diretamente à percepção documental, mas como espaço de contato com
aspectos subjetivos, a memória e suas reconstruções,
“... como
oportunidade qualificada para gratificar sensorialmente e tornar mais profundo
o contato de meu ‘eu’ com o ‘mundo externo’ ou ‘transcendente’...” (MENESES,
2012)
O Valor Formal segundo Ulpiano deve
“transcender através do belo”, gerando conexões ao sairmos de nós mesmos
intercambiando com objetos, presenças. Levando a uma compreensão, indução,
produção e transmissão de sentidos. Abastecidos pela memória e outras
experiências. Não coincidindo com o estilo arquitetônico diretamente como no
caso anterior, mas também compreendido como ferramenta, documento, fonte; porém,
a estimulação dos sentidos pelos fatos mencionados, sejam ali, o combustível
que mantém a chama acesa da gratificação do contato do interno com o externo.
Quando trabalhamos o aspecto
afetivo, confundimos com o que seria histórico (autorizado/controlado), mas na
verdade falamos de memória, pertencimento, auto-imagem, originado em conexões
subjetivas do individuo com o bem/rito/prática, no qual ele percebe a extensão
de si mesmo.
“...
memória e História nem coincidem, nem são duas faces da mesma moeda [...] Se se
tratar de carga simbólica e de vínculos subjetivos, como o sentimento de
pertença ou identidade, o domínio é dos valores afetivos. Não ignoro que
memória e História partilham de vários atributos comuns, inclusive de caráter
subjetivo e cognitivo, sem, todavia, afetar a distinção acima proposta.” (MENESES,
2012)
Para haver verificação de Valores Afetivos, não há controle
especializado, mas sim através da compreensão de representações e imaginários
sociais. Essa relação subjetiva pode surgir pelo contato do bem/rito/prática
com eventos, personalidades e cotidiano. E esses elementos podem também servir
como documento, pois possui características de Valores Cognitivos que nos levam
a senti-lo como identificação de um período/contexto histórico, por exemplo.
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Crédito: Arquivo pessoal
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Nesse prisma temos a casa situada
na Rua Senador Fonseca, que quando questionada a sua culturalidade sob
“requisitos arquitetônicos” nada agregaria, mas a afetividade, a relação
moradores/bem concebe representatividade de seu lugar, seu pertencimento trouxe
a ela sua inclusão pelo COMPAC (órgão responsável por tentar proteger a
História de Jundiaí) no Inventário de Proteção (IPPAC), para que a identidade
do local não sucumba à força do capital.
Por vivermos numa sociedade que não
percebe o outro nas suas diferenças como um igual, seus Valores Pragmáticos (uso do bem percebido como qualidade) são
diariamente e academicamente ignorados. Nesse caso podemos em partes considerar
a utilização de áreas do Complexo FEPASA, em favor da população em geral com
serviços essenciais como o SEMADS, Poupatempo, Estação Juventude, CELMI, FATEC
e o Museu da CIA Paulista. No entanto, os valores ainda não atendem a todos,
infelizmente, excetua-se em alguns desses a acessibilidade universal, pois a
chegada da pessoa até FATEC ou Poupatempo é dificultosa e por vezes perigosa
caso sua locomoção exija atenção especial.
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Crédito: Secretaria de Cultura
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Ao chegar a ambos podemos nos
sentir mais seguros. No caso da estrutura do museu e até mesmo na Sala dos
Relógios não ocorre um acesso livre e tranqüilo. Por isso o evento Simpósio
sobre Patrimônio, a criação da Diretoria de Patrimônio Histórico, COMPAC, IPPAC,
a existência da Coordenadoria da Pessoa com Deficiência, CMPD. Para chamar a
atenção para a preservação do patrimônio e garantia de cidadania plena,
“... pois
vivemos numa sociedade que ainda não superou a herança escravista, em que o
trabalho e o trabalhador não gozam de cidadania plena, em que ‘criada’ quer
dizer ‘empregada’ e em que ‘elevador de serviço’ quer dizer ‘elevador de
serviçal’. E em que o desperdício chega a 15% do PIB, em que o reuso não é tema
relevante nas escolas de arquitetura e assim por diante.” (MENESES, 2012)
Devemos garantir que haja dignidade
humana a partir de já e melhorarmos a vida de todos, e assim quem sabe, parte
de nossa História será mais bonita e com bons exemplos ao futuro. Não
marginalizando mais o usuário, o fruidor.
Os Valores Éticos estão sempre associados às interações sociais propostas
a ocorrerem nos bens. É o que favorece o multiculturalismo, o diálogo,
transformações, a diversidade cultural existente por si mesma e de forma
democrática. Em Jundiaí contamos com o Ocupa Colaborativa, que exemplifica
perfeitamente tais valores e o uso real do direito as diferenças.
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Crédito: Portal Jundiaí notícias
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O imóvel incluído no IPPAC, por ser
legitima a sua ocupação e uso do espaço como centro cultural comum e social
aceito como algo positivo em favor da cultura. Sem dimensão econômica em seu
estabelecimento como processo cultural, apenas focado em produzir, transformar,
dialogar arte com política, educação, cultura e memória. Levando o meu, o seu
“eu” a conectar-se com outros “eus”, contemplativamente, ludicamente e
intelectualmente... Sem contenção da
diferença cultural, seria um “museu imaginário”, nas palavras de Ulpiano?
Infelizmente, o espaço que estava
abandonado por anos servindo como criadouro de pestes e doenças e foi
revitalizado pelo OC, teve a reintegração de posse expedida pela justiça há
poucos dias. Assim o OC poderá mais uma vez fazer o bem em outra área da
cidade, até novamente não reconhecerem seu trabalho e tornarem a expulsá-los.
Esses valores como já dito podem
ser trabalhados de maneiras diversas e até conflitantes, porém abrem espaço
para a discussão, para uma cultura democrática, não a democracia de Sólon, mas
sim o poder nas mãos do povo e não nas mãos populares. Não podemos permitir o
domínio das verdades universais, de um colonialismo intelectual, mas deixar as
pessoas tratarem, estudarem, decidirem aquilo que as identifica – seus signos,
os valores, a consciência, as aspirações e desejos que fazem de nós
precisamente, seres humanos e não coisas.
Por não sermos coisas, devemos
controlar o capital e não o contrário, e a aplicação/utilização desses valores coerentemente
e não sob o liberalismo, permite que estejamos mais preparados ante o que
ocorre na tentativa de preservação do patrimônio jundiaiense (ocorrência global
diria), a gentrificação. Termo que surgiu em 1964, definido pela socióloga Ruth
Glass:
“... muitos
dos quarteirões de classe trabalhadora de Londres foram invadidos pelas classes
médias, alta e baixa. Casinhas e pardieiros rotos e simples – dois cômodos
embaixo, dois em cima – foram tomados, quando seus aluguéis expiraram, e se
tornaram residências caras e elegantes. Grandes casas vitorianas, degradadas há
muito tempo ou recentemente – usadas como pensões ou outro tipo de ocupação
múltipla – foram valorizadas de novo. Hoje em dia, muitas dessas casas foram
subdivididas em flats dispendiosos ou houselets.
O status social e o valor de tais
moradias é frequentemente inverso ao seu tamanho, e de qualquer modo muito
inflacionado em comparação com os níveis anteriores do bairro. Uma vez que esse
processo de “gentrification” começa,
ele vai rapidamente se espalhando até que a maioria dos ocupantes trabalhadores
originais são deslocados, e todo o caráter social do bairro é alterado.” (GLASS,
1964)
Será que isso acontece realmente aqui, ou é apenas a
visão de alguém que ainda constrói suas conexões com o espaço por não haver
nascido nele? Todos construímos conexões e como percepção sócio econômico
cultural o custo de vida jundiaiense, articulado à qualidade de vida se tornado
alto, assim tem atraído todos que vêem os centros urbanos como hostis. No caso
do Instituto Agronômico de Campinas poderíamos incluir nessa perspectiva?
Gentrificação (enobrecimento urbano, termos que não
necessariamente concordam-se) tem sua origem na palavra Gentry – Nobre. E identifica um processo de re-significação,
desmemorização não física, mas social:
“Não é um
processo de re-significação baseado num ‘bota abaixo’, nos moldes da reforma de
Paris da segunda metade do XIX ou da proposta que Le Corbusier fez para a mesma
cidade nos anos 1920, Trata-se, ao contrário, de um processo destrutivo de
relações sociais que paradoxalmente mantém e preserva grande parte das
características espaciais. Em segundo lugar, chamaria a atenção para o caráter
assumidamente antimodernista desses processos de ocupação do espaço urbano nos
anos 1960, ligados então à reabilitação de áreas tidas como obsoletas [...] (RUBINO,
2009)
De acordo com o geógrafo Neil
Smith, isso ocorre devido o retorno do capital ao centro, não o retorno, a
volta das pessoas para áreas obsoletas, prédios vagos ou pouco lucrativos. O
que impulsiona esse processo são a especulação e a indústria cultural. Não são
as pessoas que transformam o bairro quando chegam, nesse contexto, os
transformadores são construtores, agentes imobiliários e latifundiários
urbanos. Essa possível “revitalização” é oriunda do elemento capital e não
cultural ou social.
Os agentes urbanos passam como
marionetes do capital, constroem uma sobrecultura, pois tudo se torna mais
nobre (mais caro) assim, delimitam e excluem aqueles que ali viviam. Modificam
os valores de preservação histórica e cultural, para sua intenção liberal,
economia de poucos para poucos. A economia, o capital define o que é cultura e
não há relação harmoniosa entre população marginal e acesso a serviços e
consumo, além da não (ou parcial) preservação do patrimônio ou áreas de
proteção ambiental.
Agora, será que Jundiaí seja pela
re-significação social ou física, tem essas características de marginalização e
não preservação destacadas em suas transformações?
“... a
marginalização é composta de famílias de classe média que decidem trocar a
cidade por um meio ambiente mais atrativo, muitas vezes impulsionadas pelo
preço proibitivo da terra em áreas centrais. Oposta, nesse sentido ao
enobrecimento, a periurbanização também se diferencia da marginalização – esta
diz respeito ao espaço físico e social dos conjuntos habitacionais. Pensados
para uma sociedade industrial, sonho dos arquitetos e engenheiros modernos,
tais empreendimentos tiveram seus usos e significados alterados quando da
redução do trabalho industrial menos qualificado, assim como de uma ocupação de
imigrantes que ‘espantaram’ moradores de classe média. Mudou o enquadramento:
de uma ilustração da modernidade, tais conjuntos passaram a simbolizar a
marginalização, desterro e ostracismo. (RUBINO, 2009)
Mas será que os conjuntos em
Jundiaí atendem essa tendência de afastamento do centro, com mobilidade ou
imobilidade? Favorecendo ou prejudicando população, economia, cultura?
Mas Jundiaí apresenta suas formas
particulares de apropriação de espaço, como sua gentrificação, se percebermos o
êxodo dos grandes para a “cidade da uva”. Há uma grande parte dos moradores que
buscaram um ambiente mais confortável. Há ainda o “empurrar” daqueles que foram
excluídos das áreas enobrecidas e não tem escolhas quanto onde habitar. Essas
formas se baseiam, além da já citada, em marginalização e periurbanização.
“... os
espaços marginalizados fazem valer seu nome: relações marcadas por sérios
constrangimentos, imobilidade, insegurança no espaço comum. Se tais espaços
foram deteriorados por uma crise de emprego, é notável que novos arranjos
econômicos não os incluam, que pareça recair sobre tais áreas um destino
social. Eles estão longe, espacial e socialmente, de empregos viáveis, o
transporte é moroso e caro, um caso de desencontro espacial...” (RUBINO, 2009)
O crescimento urbano e alta procura
de novos cidadãos transformam a cidade numa proposta clara da globalização e
das separações, um apartheid
embrionário concebido pela mão do capital. Jundiaí não foge a regra e torna-se
um microcosmo dos macrocentros.
[...]
“Assim, não
espanta que aqueles que elegem o espaço periurbano procurem se distinguir do
primeiro caso, da imobilidade em todos os sentidos. Os habitantes das áreas
marginalizadas seriam um elemento disruptivo nesse sentido de vida calmo e em
tese próximo da natureza, e essa incompatibilidade não é irrelevante ou
temporária. São áreas e habitantes impelidos a uma hipermobilidade, à
onipresença do automóvel e a relações interpessoais que visam a proteção do
sonho bucólico e comunitário – a imagem de uma aldeia. Trata-se de um espaço de
escolhas (escolas, amigos), de viagens diárias e circulação.
Os
habitantes dos conjuntos habitacionais aparecem como ‘outros’, assim como os Bobos que habitam o espaço enobrecido,
sendo que estes não precisam enfrentar as mesmas dificuldades – os longos
trajetos, tampouco a sensação de imobilidade.”
[...]
“Ao
contrário dos periurbanistas que perdem tempo se deslocando, os habitantes de
bairros enobrecidos não estão presos à mobilidade ou imobilidade, pois seu lema
é a ubiqüidade, por conta da
proximidade entre casa e trabalho e da eficiente rede real ou virtual que os
autoriza a estarem em qualquer lugar do globo.” (RUBINO, 2009)
A gentrificação garante a
segregação de acordo com a sua necessidade, pois,
“Trata-se
de um usufruir das qualidades da cidade sem suas desvantagens, um processo que
gera um produto que atrai os que podem por ele pagar, ao mesmo tempo em que
garante que os que não podem desapareçam.” (Rubino, 2009)
Por conseguir reestruturar,
reordenar hábitos culturais a gentrificação faz existir uma classe reflexiva, autoconsciente
e quer tornar publica sua estética e maximização de sua posse de bens e
cultura. Levando o enobrecimento a eventos, lugares, situações, tudo a passa a
ser menos acessível aos simples mortais como nós. O carnaval, o futebol que são
eventos do povo foram colonizados (gentrificados) e passaram a ser populares,
eliminando o simbolismo anterior, essa classe liberal apropria-se desses
eventos, re-significam-nos e os oferecem agora “com qualidade”, ou seja, mais
caros, exclusivos, gourmet. Esses são
exemplos não físicos para facilitar a compreensão do que ocorre fisicamente
quando, os valores culturais são esquecidos e a revitalização,
“... termo que vulgarizou-se de tal forma que perdeu o
sentido original. No uso corriqueiro, traz embutida a visão de um lugar antes
sem vida, ‘desvitalizado’. O conceito, empregado pela UNESCO em suas Normas de
Quito de 1962 referia-se a ações de cidadania que pudessem paralisar ações
destrutivas. Mas foi na Conferência de Nairobi de 1976 que o termo ganhou
contornos mais nítidos, como parte de uma ação de salvaguarda que deveria
abranger identificação, proteção, conservação, restauração, reabilitação e
manutenção de conjuntos históricos. Revitalização seria ‘manter as funções
apropriadas existentes e em particular o comércio e o artesanato e criar outras
novas que, para serem viáveis a longo prazo, deveriam ser compatíveis com o
contexto econômico e social, urbano e regional ou nacional em que se inserem.
(...) uma política de revitalização cultural deveria converter os conjuntos
históricos em pólos de atividades culturais e atribuir-lhes um papel essencial
no desenvolvimento cultural das sociedades circundantes’.” (IPHAN/MINC, 1995),
torna-se propriedade da especulação
imobiliária e de uma nova política de higienismo, exclusão, desqualificação e
segregação.
“O
enobrecimento urbano não deixa de ser uma modalidade contemporânea de
higienismo, encoberta por um discurso de vida e apreço à cidade. Dialoga com
diversas outras formas de ocupação segregação urbana ao conferir um valor
simbólico ao luar, e a partir daí auferir outros valores. Assim fica claro o
empenho em revitalizar por meio de equipamentos culturais: é preciso um certo
capital para se apropriar deles. Afinal, a cidade é feita de fronteiras, que
tanto impedem que os atores sociais considerados impróprios entrem, como que os
legítimos saiam e assim se desclassifiquem.”
[...]
“O
enobrecimento urbano não é apenas uma política de exclusão, mas uma faceta
delicada das dinâmicas urbanas, uma vez que quanto mais afirma o valor e o
papel da cidade, lembra que o ar da cidade liberta apenas aqueles que sabem e
podem nela viver.” (RUBINO, 2009)
Faz-se necessário, urgente na
verdade de novas ferramentas educacionais que mobilizem uma interdisciplinaridade,
um estudo aplicado de valores culturais que mantenham significados sem
inviabilizar a construção da memória e do processo cultural que é o patrimônio,
sua História, seu legado e valores. Ou seremos uma sociedade sem relato, com a
História contada de um não lugar, uma não existência. Ou ainda contada, porém
de forma a negligenciar aqueles que de certa forma são os responsáveis, os
guardiões da nossa herança como definiu o “Antropoteto” Carlos Nelson.
Para entendermos a importância do
que é patrimônio primeiro delineamos de forma superficial os valores e o que
ocorre com ou sem a utilização destes. Assim podemos discutir um pouco mais
sobre a herança/patrimônio em si. Mais do que um discurso autorizado
(historiadores, arquitetos, engenheiros...), patrimônio é uma construção de
discursos alternativos e diversificados. Assim o edifício per se não é um patrimônio nem a memória solitária, mas o que são e
como se relacionam a memória, a prática e o local.
Patrimônio não é algo estático,
valores estabelecidos e significados se reinventam e devem ser protegidos de um
controle, de uma classe dominante. Não pode ceder a ideia de patrimônio
estabelecida pela ideologia de nacionalismo, uma identidade nacional privilegia
valores não perceptíveis na comunidade onde o bem deve ser “ouvido”. A
imposição do federal sobre o municipal destrói a História, a memória, a
identidade local, pois a identidade nacional é uma rede complexa de identidades
regionais, de bairros, comunitárias, etc. Não é possível definir de cima para
baixo, mas sim de baixo para cima. O todo não poderá ser estabelecido sem suas
partes.
O estudo do patrimônio por vezes tende
a fortalecer um discurso de legitimação e manutenção do status quo. Sendo ferramentas de poder favorecendo a eliminação de
memórias, bens, culturas, povos. Um exemplo corrente é a desterritoriedade de
povos indígenas e sua caça por interessados em lhe apresentar (impor) “a
palavra de Deus”. Mais uma questão a complicar os debates sobre patrimônio é
reduzi-lo a “propriedade”. Os especialistas reivindicam-no como seu, o poder
público os assume e pouco ou nada faz. Quem controla o passado? Quem controla o
sentido? Qual mentalidade o define?
“Os bens
reunidos na história por cada sociedade não pertencem realmente a todos, embora formalmente
pareçam ser e estar disponíveis para todos. Ao analisar como se transmite o
saber de cada sociedade nas escolas e nos museus, vemos que os grupos se
apropriam da herança cultural de modos diferentes e desiguais. As pesquisas
sobre públicos de museus mostram que, à medida que descemos na escala econômica
e educacional, diminui a capacidade de apropriação do capital cultural
transmitido por essas instituições.
Embora
ocasionalmente o patrimônio sirva para unificar uma nação, as desigualdades em
sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de disputa
material e simbólica entre os setores que a compõem. Consagram-se como
superiores bairros, objetos e saberes gerados pelos grupos hegemônicos, porque
eles contam com a informação e a formação necessárias para compreendê-los e
apreciá-los e, portanto, para controlá-los melhor. Historiadores, arqueólogos e
políticos da cultura definem quais são os bens superiores que merecem ser
conservados. Reproduzem, assim, os privilégios daqueles que em cada época
dispuseram de meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio,
para imprimir a esses bens um valor mais elevado.
Nas classes
populares, encontramos às vezes certos usos refinados de suas destrezas manuais
para dar soluções técnicas apropriadas a seu estilo de vida e também para jogar
imaginativamente com seus recursos. Mas é difícil que esse resultado possa
competir com o daqueles que dispõem de um saber acumulado historicamente, que
empregam arquitetos e engenheiros, que contam com poder econômico e com a
possibilidade de confrontar seus desenhos com avanços internacionais.”
(CANCLINI, 2012)
As pessoas que o usufruem, mas usufruem como
memória em seu benefício, sua fruição, aprisionam-no ou libertam-no? O bem deve
sustentar-se por uma base subversiva, libertadora, transcendendo apenas o
patrimônio. Como no caso dos chamados “imateriais”, não surgem fortemente como
ferramentas de segregação porque ainda não foram totalmente controlados pelo
capital, mas não estão livres dos órgãos que se dizem protetores estarem
contaminados e buscarem lobby para
definir qual História contar e como contar. Não temos o passado lá atrás, ele é
recriado e é necessário entendê-lo e fortalecer aqueles que querem preservar
realmente o pouco que nos resta.
Tem de se evitar a todo custo uma
elitização, um discurso dominante que ignora, cala, esconde o acesso e a
proteção
“... às recordações
familiares , às histórias locais, de clã, de familiares, de aldeias, às
recordações pessoais [...], que de algum modo representam a consciência
coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e
experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e
monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos.” (RANGER,
1977)
O não lugar tomado por muros que
abrigam estacionamentos atrás de cenários não garante a idéia de pertencimento,
mas sim a versão contada pelo crescimento desordenado e desmemoriado, que nada
lembra ou preserva. Apenas cresce inexistente, alienado, desconectado. E assim
a memória e as histórias se vão, abrindo espaço para mais “lugar nenhum” cheio
de pavimentos e veículos a serviço do capital. A grande história, conceitos
objetivos de preservação com leis, reuniões e padrões nada mais são do que
sofisticação de preceitos subjetivos e seleção de micro histórias controladas,
admitidas ou apagadas, pelo interesse monetário. Dinheiro é necessário a todos
nós, mas quem tem o outro nas mãos?
“A memória,
na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória
coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (GOFF, 2003)
Quem é o
dono do passado?
Quem
controla o sentido e o valor da herança (patrimônio)? (SMITH, 2006)
Referências bibliográficas:
CANCLINI, N. G. A
sociedade sem relato. Antropologia e estética da iminência. SP: Edusp, 2012.
Constituição Federal. Brasília: 1988
GLASS,
R. “Introduction: Aspects of change”, in Centre for Urban Studies (ed.).
London: Aspects of change. London:
MacGibbon and Kee, 1964.
LE GOFF, J. História
e memória; tradução Bernardo Leitão... [et al.]. – 5ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2003.
MENESES, U.T.B.O. O campo do Patrimônio Cultural: uma
revisão de premissas. In: IPHAN. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural:
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências
para uma nova gestão, Ouro Preto/MG, 2009. Brasília: IPHAN, 2012, p. 25 – 39.
RANGER, T.O.
“Memória pessoal da experiência popular na África Centro Oriental”, Caderno
histórico, XII, 35, 1977, PP. 359-402.
RUBINO, S. “Políticas de enobrecimento”. In: FORTUNA, C
e LEITE, R.P. (org.). Plural de cidades:
léxicos e culturas urbanas. Coimbra: Almedina, 2009. p. 25-40.
SMITH,
L. Uses of heritage. Nova York:
Routledge, 2006.
SMITH,
N. The new urban frontier. Gentrification
and the revanchist city. London/ New York: Routledge, 2000.
SMITH,
N e WILLIAMS, P. (eds.). The
gentrification and the city. Boston: Allen & Unwin.








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