Quem contará essa História? E que História é essa? Patrimônio, Premissas e Dignidade Humana

Introdução

Ao debater sobre patrimônio, sem polarizar material e imaterial, deparamo-nos com a liquidez, a descartabilidade das relações e situações que não criam raízes, por vezes devido à excessividade de informações, signos e considerações. Assim como a memória, ambos sucumbem ao contexto histórico, sua construção orienta-se pela subjetividade elevada a padrão intelectual de pensamento e evoluem ou regridem de acordo com a necessidade do principio dominante.
A necessidade atual poderia ser, no caso de Jundiaí, a manutenção de uma identidade, mas o que é uma identidade jundiaiense? É preservar o Complexo FEPASA, a Casa Rosa e um pé de uva? Se não há uma identificação clara, definida, que se evite a transformação em um não lugar da Jundiaí indefinida. Se há preservação, que o objeto preservado tenha uma função social, pensando o bem coletivo e salvaguardando de forma equilibrada o direito a propriedade privada.
No decorrer do pensar o patrimônio e a cidade, áreas preservadas devem ser utilizadas de modo a atender demandas sociais, abrangentes. Revitalização, dignidade, por exemplo. Diferentemente de Gentryfication, que tem como objetivo atender a especulação imobiliária e perda de identidade para uma percepção colonizada de identidade econômica líquida e exclusivista.
Tais dificuldades são oriundas da falta de equilíbrio entre desenvolvimento/crescimento urbano, humanidade e natureza. Mas como aplicar novas premissas numa sociedade capitalista que afere o lucro antes de garantir a preservação da dignidade.
Faz-se urgente, a quebra de paradigmas em relação aos conceitos que embasam o processo de preservação. Temos tido como interesse a priori o capital, mascarado em critérios arquitetônicos que desde o Estado Novo tem norteado a preservação, apresentando a “ideia de nacionalismo”, “identidade nacional”, raramente relevando outras perspectivas sob seu discurso autorizado.
Serão essas premissas ainda válidas? Busquemos alternativas mais humanas interligando, renovando critérios, transformando, quebrando paradigmas. O que prevalece, a sacralidade da integridade edificada ou a acessibilidade universal? O tijolo ou o ser humano? Quem contará essa História?

Como se conta a História

O objetivo destas poucas palavras não é oferecer uma resposta, mas fazer uma reflexão crítica a respeito do que consideramos importante ao debater o tema patrimônio. Abandonemos a polaridade material/imaterial e atentemo-nos ao valor intrínseco ao bem, às práticas e praticantes envolvidos no processo cultural: Patrimônio.
Mas perceber valores ainda é como discutir dogmas, premissas, paradigmas e controle através de discursos autorizados ante os agentes do processo que por vezes são calados ou, tem à sua frente surdos intelectuais oportunos como os fanáticos definidos pelo antropólogo Malek Chebel:

“Contudo, os crentes em geral têm o dom de permanecer surdos a formas de pensamentos que não convém à sua fé”. (CHEBEL, 2015)

Aproveitemos essa rara oportunidade de colocar em pauta como contaremos essa História. Será ainda como o Decreto Lei 25/1937

Art.1º Constitui o patrimônio artístico e histórico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos 4 Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta Lei.  (grifo meu),

que sistematizou e organizou o patrimônio no Brasil e ainda referencia certas situações, colocando o tombamento como definidor (escolhido pelo poder publico) do valor cultural do objeto? Ou utilizaremos uma nova antiga proposta, constante na Constituição Federal de 1988, como o artigo 216?

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Assim vemos uma troca, uma inversão na percepção do que é patrimônio; antes na busca de um nacionalismo presente as décadas de 1930/1940, focadas em valores arquitetônicos. Na “constituição cidadã”, teoricamente, a busca pelos valores culturais são referidos pela sociedade e não apenas imposta a ela. Ou seja, o patrimônio é um fato social, um processo cultural, uma construção sócio-cultural e não algum tipo de colonização intelectual especializada pautada no interesse econômico, e de forma, por vezes, velada negando a dignidade humana.
Exemplifiquemos o que é e como é contada a História. Você que lê este artigo, suponho, não é favorável ao trabalho compulsório, outra nomenclatura para escravização. Nosso país por séculos teve sua economia alicerçada nessa imbecilidade e temos como homens de visão barões e coronéis que, sendo proprietários de pessoas fizeram nosso país “crescer” sobre o sangue e suor de indígenas, africanos e descendentes. E após a tal Lei Áurea permaneceram marginalizados e lutam diariamente por reconhecimento e direito a ter direitos. 
Acredito também que você possua smartphone, desktop, notebook, tablet ou quaisquer outros dispositivos eletrônicos e é provável que esteja lendo esse texto em algum desses dispositivos. Pois bem, de acordo com o Índice Global de Escravidão elaborado pela Fundação Walk Free, nosso Brasil possui por volta de 160 mil pessoas sob trabalho análogo a escravidão. Distribuídos na produção do nosso café, do carvão para o seu churrasquinho e na sua roupa chique para o passeio do fim de semana. Se você possui um dos aparelhos descritos, mesmo sendo montados na Zona Franca de Manaus ou no Distrito Industrial de Jundiaí, lembre-se que os componentes principais são oriundos, por exemplo, da China e de Taiwan onde a legislação trabalhista parece ter sido copiada dos nossos barões do século XVIII e XIX. Assim como a sua roupinha chique sendo costurada por bolivianos e peruanos trancafiados o dia todo em cubículos no bairro paulista do Brás.
De acordo com a ONG Verité e a Fundação Walk Free, no mundo existem mais de 48 milhões de pessoas sob trabalho análogo ou mesmo escravo. Seja na produção do seu chocolate, do seu aparelho eletrônico, do seu tênis jogging da sua roupa importada confeccionada em Bangladesh, Taiwan ou China. Será que deixaremos de usar os produtos que tanto nos facilitam a vida por sermos contra a escravidão? Nossos bisnetos contarão a História de nosso tempo considerando-nos como heróis pelas nossas realizações ou como monstros hipócritas que criticaram a escravização de índios, africanos e seus descendentes; e pela não identificação com o “próximo” que habita esse e o outro lado do globo deixaremos que sejam oprimidos e explorados até a exaustão?

Que patrimônio nós queremos?

“Temos de agradecer, portanto, às camadas mais pobres. Há quase duzentos anos são os maiores guardiões do nosso patrimônio. Já é tempo de tentar retribuir-lhes o favor, dignificando os espaços em que vivem e trabalham, sem espoliá-los.”
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, “Antropoteto”

No debate sobre patrimônio há sobreposição de determinado grupo sobre outro, Por qual/is grupos o patrimônio jundiaiense fala?

Imigrantes europeus
Homens
Mulheres
Escravizados
Migrantes
Caboclos
Indígenas
Afrodescendentes
Elite cafeeira
Ferroviários
Trabalhadores têxteis
Nós?

Assim como o Museu Histórico e Cultural de Jundiaí, conhecido como Solar do Barão. O que podemos superficialmente extrair de sua História?

Crédito: Secretaria de Cultura
É uma construção urbana típica do século XIX (1860), construída em taipa de pilão, com jardim em estilo neorrococó, tendo identificação com nomes científicos e procedência da maior parte das plantas ali acondicionadas. Pertenceu a família Queiroz Telles, nome de grande repercussão na sociedade paulista e brasileira e liderança dentro da aristocracia cafeeira. Interessante! E quantas pessoas escravizadas serviram nessa casa? O tombamento na década de 1970 pelo CONDEPHAAT levou em consideração (como consta) apenas sua arquitetura? Ou também a reunião de Eloy Chaves quando cria a sua companhia de luz? Claro que sua arquitetura possui relevância importantíssima ao município, mas só passou a ser um fato social, um processo cultural de identidade e formação social ao se estabelecer ali em 1982 o museu permitindo, como define Bernard Stiegler um “materialismo espiritualista”. Assim a percepção cultural tem um corpo: a construção, e uma alma: sua função sócio-político-cultural. 
Corpo e alma, constituição de uma identidade não a meu ver sob um interesse econômico, mas sim sob interesses mobilizados por ideias, crenças, afetos, influências... (em geral valores) da população. Não engessados, mas sim passíveis de revisão, reestruturações cognitivas, atualização constante de visão do passado para construção de um futuro.
Para que isso ocorra é urgente que o usuário, o fruidor, o perceptor possa ser o agente principal de criação da ideia e essa é permeada segundo alguns componentes apresentados pelo professor da FFLCH/USP Ulpiano Toledo de Bezerra de Meneses, que não se isolam e agrupam-se das formas mais variadas.
Antes deve ficar claro que não pode haver polaridade entre materialidade e imaterialidade e nem deverá ocorrer disputas entre Valor arquitetônico e Valor Histórico, entre Valor Técnico e Valor Social e entre Especialista e Fruidor. Mas sim a aglutinação desses valores no Valor Cultural e sua estruturação sobre os componentes apresentados pelo Profº Ulpiano.

Valores Cognitivos
Valores Formais
Valores Afetivos
Valores Pragmáticos
Valores Éticos

(lembre-se que não se atribui existência isolada aos valores, apenas como referência majoritária e fácil compreensão será explicitado um valor para cada estudo, sendo que a todos cabem diversas complexidades)
Como exemplo em Jundiaí do que pode se atribuir Valores Cognitivos temos a casa da família Malpaga ou Casa Rosa, motivo de tantos encontros e desencontros.

Crédito: DPHC Jundiaí
Podemos entendê-la como um documento, pois oferece informação de natureza múltipla: como identificar os efeitos dos interesses no seu projeto, contexto histórico, conceito de espaço, agentes sociais envolvidos, padrão estilístico e mais recente o ocaso de seu “destombamento” e o risco de desaparecimento sob as forças do interesse econômico. Além de seu imaginário social, podemos destacar a identidade e o pertencimento, a representação de um período considerado relevante a cidade, o que gerou até um movimento liderado por jovens pela preservação do bem, dessa herança, características essas que revelam a presença também do Valor Afetivo.
A respeito dos Valores Formais, podemos citar o Museu da Companhia Paulista (Museu Ferroviário/ Museu Barão de Mauá) ao lado da Sala dos Relógios, onde ocorreu em Agosto de 2016 o IV Simpósio sobre Patrimônio de Jundiaí.

Crédito: TripAdvisor
 Sua estruturação como fato social não atribuo diretamente à percepção documental, mas como espaço de contato com aspectos subjetivos, a memória e suas reconstruções,

“... como oportunidade qualificada para gratificar sensorialmente e tornar mais profundo o contato de meu ‘eu’ com o ‘mundo externo’ ou ‘transcendente’...” (MENESES, 2012)

O Valor Formal segundo Ulpiano deve “transcender através do belo”, gerando conexões ao sairmos de nós mesmos intercambiando com objetos, presenças. Levando a uma compreensão, indução, produção e transmissão de sentidos. Abastecidos pela memória e outras experiências. Não coincidindo com o estilo arquitetônico diretamente como no caso anterior, mas também compreendido como ferramenta, documento, fonte; porém, a estimulação dos sentidos pelos fatos mencionados, sejam ali, o combustível que mantém a chama acesa da gratificação do contato do interno com o externo. 
Quando trabalhamos o aspecto afetivo, confundimos com o que seria histórico (autorizado/controlado), mas na verdade falamos de memória, pertencimento, auto-imagem, originado em conexões subjetivas do individuo com o bem/rito/prática, no qual ele percebe a extensão de si mesmo.

“... memória e História nem coincidem, nem são duas faces da mesma moeda [...] Se se tratar de carga simbólica e de vínculos subjetivos, como o sentimento de pertença ou identidade, o domínio é dos valores afetivos. Não ignoro que memória e História partilham de vários atributos comuns, inclusive de caráter subjetivo e cognitivo, sem, todavia, afetar a distinção acima proposta.” (MENESES, 2012)

Para haver verificação de Valores Afetivos, não há controle especializado, mas sim através da compreensão de representações e imaginários sociais. Essa relação subjetiva pode surgir pelo contato do bem/rito/prática com eventos, personalidades e cotidiano. E esses elementos podem também servir como documento, pois possui características de Valores Cognitivos que nos levam a senti-lo como identificação de um período/contexto histórico, por exemplo.

Crédito: Arquivo pessoal
 Nesse prisma temos a casa situada na Rua Senador Fonseca, que quando questionada a sua culturalidade sob “requisitos arquitetônicos” nada agregaria, mas a afetividade, a relação moradores/bem concebe representatividade de seu lugar, seu pertencimento trouxe a ela sua inclusão pelo COMPAC (órgão responsável por tentar proteger a História de Jundiaí) no Inventário de Proteção (IPPAC), para que a identidade do local não sucumba à força do capital.
Por vivermos numa sociedade que não percebe o outro nas suas diferenças como um igual, seus Valores Pragmáticos (uso do bem percebido como qualidade) são diariamente e academicamente ignorados. Nesse caso podemos em partes considerar a utilização de áreas do Complexo FEPASA, em favor da população em geral com serviços essenciais como o SEMADS, Poupatempo, Estação Juventude, CELMI, FATEC e o Museu da CIA Paulista. No entanto, os valores ainda não atendem a todos, infelizmente, excetua-se em alguns desses a acessibilidade universal, pois a chegada da pessoa até FATEC ou Poupatempo é dificultosa e por vezes perigosa caso sua locomoção exija atenção especial.

Crédito: Secretaria de Cultura
Ao chegar a ambos podemos nos sentir mais seguros. No caso da estrutura do museu e até mesmo na Sala dos Relógios não ocorre um acesso livre e tranqüilo. Por isso o evento Simpósio sobre Patrimônio, a criação da Diretoria de Patrimônio Histórico, COMPAC, IPPAC, a existência da Coordenadoria da Pessoa com Deficiência, CMPD. Para chamar a atenção para a preservação do patrimônio e garantia de cidadania plena,

“... pois vivemos numa sociedade que ainda não superou a herança escravista, em que o trabalho e o trabalhador não gozam de cidadania plena, em que ‘criada’ quer dizer ‘empregada’ e em que ‘elevador de serviço’ quer dizer ‘elevador de serviçal’. E em que o desperdício chega a 15% do PIB, em que o reuso não é tema relevante nas escolas de arquitetura e assim por diante.” (MENESES, 2012)

Devemos garantir que haja dignidade humana a partir de já e melhorarmos a vida de todos, e assim quem sabe, parte de nossa História será mais bonita e com bons exemplos ao futuro. Não marginalizando mais o usuário, o fruidor.
Os Valores Éticos estão sempre associados às interações sociais propostas a ocorrerem nos bens. É o que favorece o multiculturalismo, o diálogo, transformações, a diversidade cultural existente por si mesma e de forma democrática. Em Jundiaí contamos com o Ocupa Colaborativa, que exemplifica perfeitamente tais valores e o uso real do direito as diferenças.

Crédito: Portal Jundiaí notícias
O imóvel incluído no IPPAC, por ser legitima a sua ocupação e uso do espaço como centro cultural comum e social aceito como algo positivo em favor da cultura. Sem dimensão econômica em seu estabelecimento como processo cultural, apenas focado em produzir, transformar, dialogar arte com política, educação, cultura e memória. Levando o meu, o seu “eu” a conectar-se com outros “eus”, contemplativamente, ludicamente e intelectualmente...  Sem contenção da diferença cultural, seria um “museu imaginário”, nas palavras de Ulpiano?
Infelizmente, o espaço que estava abandonado por anos servindo como criadouro de pestes e doenças e foi revitalizado pelo OC, teve a reintegração de posse expedida pela justiça há poucos dias. Assim o OC poderá mais uma vez fazer o bem em outra área da cidade, até novamente não reconhecerem seu trabalho e tornarem a expulsá-los.
Esses valores como já dito podem ser trabalhados de maneiras diversas e até conflitantes, porém abrem espaço para a discussão, para uma cultura democrática, não a democracia de Sólon, mas sim o poder nas mãos do povo e não nas mãos populares. Não podemos permitir o domínio das verdades universais, de um colonialismo intelectual, mas deixar as pessoas tratarem, estudarem, decidirem aquilo que as identifica – seus signos, os valores, a consciência, as aspirações e desejos que fazem de nós precisamente, seres humanos e não coisas.
Por não sermos coisas, devemos controlar o capital e não o contrário, e a aplicação/utilização desses valores coerentemente e não sob o liberalismo, permite que estejamos mais preparados ante o que ocorre na tentativa de preservação do patrimônio jundiaiense (ocorrência global diria), a gentrificação. Termo que surgiu em 1964, definido pela socióloga Ruth Glass:

“... muitos dos quarteirões de classe trabalhadora de Londres foram invadidos pelas classes médias, alta e baixa. Casinhas e pardieiros rotos e simples – dois cômodos embaixo, dois em cima – foram tomados, quando seus aluguéis expiraram, e se tornaram residências caras e elegantes. Grandes casas vitorianas, degradadas há muito tempo ou recentemente – usadas como pensões ou outro tipo de ocupação múltipla – foram valorizadas de novo. Hoje em dia, muitas dessas casas foram subdivididas em flats dispendiosos ou houselets. O status social e o valor de tais moradias é frequentemente inverso ao seu tamanho, e de qualquer modo muito inflacionado em comparação com os níveis anteriores do bairro. Uma vez que esse processo de “gentrification” começa, ele vai rapidamente se espalhando até que a maioria dos ocupantes trabalhadores originais são deslocados, e todo o caráter social do bairro é alterado.” (GLASS, 1964)

Será que isso acontece realmente aqui, ou é apenas a visão de alguém que ainda constrói suas conexões com o espaço por não haver nascido nele? Todos construímos conexões e como percepção sócio econômico cultural o custo de vida jundiaiense, articulado à qualidade de vida se tornado alto, assim tem atraído todos que vêem os centros urbanos como hostis. No caso do Instituto Agronômico de Campinas poderíamos incluir nessa perspectiva?
Gentrificação (enobrecimento urbano, termos que não necessariamente concordam-se) tem sua origem na palavra Gentry – Nobre. E identifica um processo de re-significação, desmemorização não física, mas social:

“Não é um processo de re-significação baseado num ‘bota abaixo’, nos moldes da reforma de Paris da segunda metade do XIX ou da proposta que Le Corbusier fez para a mesma cidade nos anos 1920, Trata-se, ao contrário, de um processo destrutivo de relações sociais que paradoxalmente mantém e preserva grande parte das características espaciais. Em segundo lugar, chamaria a atenção para o caráter assumidamente antimodernista desses processos de ocupação do espaço urbano nos anos 1960, ligados então à reabilitação de áreas tidas como obsoletas [...] (RUBINO, 2009)

De acordo com o geógrafo Neil Smith, isso ocorre devido o retorno do capital ao centro, não o retorno, a volta das pessoas para áreas obsoletas, prédios vagos ou pouco lucrativos. O que impulsiona esse processo são a especulação e a indústria cultural. Não são as pessoas que transformam o bairro quando chegam, nesse contexto, os transformadores são construtores, agentes imobiliários e latifundiários urbanos. Essa possível “revitalização” é oriunda do elemento capital e não cultural ou social.
Os agentes urbanos passam como marionetes do capital, constroem uma sobrecultura, pois tudo se torna mais nobre (mais caro) assim, delimitam e excluem aqueles que ali viviam. Modificam os valores de preservação histórica e cultural, para sua intenção liberal, economia de poucos para poucos. A economia, o capital define o que é cultura e não há relação harmoniosa entre população marginal e acesso a serviços e consumo, além da não (ou parcial) preservação do patrimônio ou áreas de proteção ambiental.
Agora, será que Jundiaí seja pela re-significação social ou física, tem essas características de marginalização e não preservação destacadas em suas transformações?

“... a marginalização é composta de famílias de classe média que decidem trocar a cidade por um meio ambiente mais atrativo, muitas vezes impulsionadas pelo preço proibitivo da terra em áreas centrais. Oposta, nesse sentido ao enobrecimento, a periurbanização também se diferencia da marginalização – esta diz respeito ao espaço físico e social dos conjuntos habitacionais. Pensados para uma sociedade industrial, sonho dos arquitetos e engenheiros modernos, tais empreendimentos tiveram seus usos e significados alterados quando da redução do trabalho industrial menos qualificado, assim como de uma ocupação de imigrantes que ‘espantaram’ moradores de classe média. Mudou o enquadramento: de uma ilustração da modernidade, tais conjuntos passaram a simbolizar a marginalização, desterro e ostracismo. (RUBINO, 2009)

Mas será que os conjuntos em Jundiaí atendem essa tendência de afastamento do centro, com mobilidade ou imobilidade? Favorecendo ou prejudicando população, economia, cultura?
Mas Jundiaí apresenta suas formas particulares de apropriação de espaço, como sua gentrificação, se percebermos o êxodo dos grandes para a “cidade da uva”. Há uma grande parte dos moradores que buscaram um ambiente mais confortável. Há ainda o “empurrar” daqueles que foram excluídos das áreas enobrecidas e não tem escolhas quanto onde habitar. Essas formas se baseiam, além da já citada, em marginalização e periurbanização.

“... os espaços marginalizados fazem valer seu nome: relações marcadas por sérios constrangimentos, imobilidade, insegurança no espaço comum. Se tais espaços foram deteriorados por uma crise de emprego, é notável que novos arranjos econômicos não os incluam, que pareça recair sobre tais áreas um destino social. Eles estão longe, espacial e socialmente, de empregos viáveis, o transporte é moroso e caro, um caso de desencontro espacial...” (RUBINO, 2009)

O crescimento urbano e alta procura de novos cidadãos transformam a cidade numa proposta clara da globalização e das separações, um apartheid embrionário concebido pela mão do capital. Jundiaí não foge a regra e torna-se um microcosmo dos macrocentros.

[...]
“Assim, não espanta que aqueles que elegem o espaço periurbano procurem se distinguir do primeiro caso, da imobilidade em todos os sentidos. Os habitantes das áreas marginalizadas seriam um elemento disruptivo nesse sentido de vida calmo e em tese próximo da natureza, e essa incompatibilidade não é irrelevante ou temporária. São áreas e habitantes impelidos a uma hipermobilidade, à onipresença do automóvel e a relações interpessoais que visam a proteção do sonho bucólico e comunitário – a imagem de uma aldeia. Trata-se de um espaço de escolhas (escolas, amigos), de viagens diárias e circulação.
Os habitantes dos conjuntos habitacionais aparecem como ‘outros’, assim como os Bobos que habitam o espaço enobrecido, sendo que estes não precisam enfrentar as mesmas dificuldades – os longos trajetos, tampouco a sensação de imobilidade.”
[...]
“Ao contrário dos periurbanistas que perdem tempo se deslocando, os habitantes de bairros enobrecidos não estão presos à mobilidade ou imobilidade, pois seu lema é a ubiqüidade, por conta da proximidade entre casa e trabalho e da eficiente rede real ou virtual que os autoriza a estarem em qualquer lugar do globo.” (RUBINO, 2009)

A gentrificação garante a segregação de acordo com a sua necessidade, pois,

“Trata-se de um usufruir das qualidades da cidade sem suas desvantagens, um processo que gera um produto que atrai os que podem por ele pagar, ao mesmo tempo em que garante que os que não podem desapareçam.” (Rubino, 2009)

Por conseguir reestruturar, reordenar hábitos culturais a gentrificação faz existir uma classe reflexiva, autoconsciente e quer tornar publica sua estética e maximização de sua posse de bens e cultura. Levando o enobrecimento a eventos, lugares, situações, tudo a passa a ser menos acessível aos simples mortais como nós. O carnaval, o futebol que são eventos do povo foram colonizados (gentrificados) e passaram a ser populares, eliminando o simbolismo anterior, essa classe liberal apropria-se desses eventos, re-significam-nos e os oferecem agora “com qualidade”, ou seja, mais caros, exclusivos, gourmet. Esses são exemplos não físicos para facilitar a compreensão do que ocorre fisicamente quando, os valores culturais são esquecidos e a revitalização,

“... termo que vulgarizou-se de tal forma que perdeu o sentido original. No uso corriqueiro, traz embutida a visão de um lugar antes sem vida, ‘desvitalizado’. O conceito, empregado pela UNESCO em suas Normas de Quito de 1962 referia-se a ações de cidadania que pudessem paralisar ações destrutivas. Mas foi na Conferência de Nairobi de 1976 que o termo ganhou contornos mais nítidos, como parte de uma ação de salvaguarda que deveria abranger identificação, proteção, conservação, restauração, reabilitação e manutenção de conjuntos históricos. Revitalização seria ‘manter as funções apropriadas existentes e em particular o comércio e o artesanato e criar outras novas que, para serem viáveis a longo prazo, deveriam ser compatíveis com o contexto econômico e social, urbano e regional ou nacional em que se inserem. (...) uma política de revitalização cultural deveria converter os conjuntos históricos em pólos de atividades culturais e atribuir-lhes um papel essencial no desenvolvimento cultural das sociedades circundantes’.” (IPHAN/MINC, 1995),

torna-se propriedade da especulação imobiliária e de uma nova política de higienismo, exclusão, desqualificação e segregação.

“O enobrecimento urbano não deixa de ser uma modalidade contemporânea de higienismo, encoberta por um discurso de vida e apreço à cidade. Dialoga com diversas outras formas de ocupação segregação urbana ao conferir um valor simbólico ao luar, e a partir daí auferir outros valores. Assim fica claro o empenho em revitalizar por meio de equipamentos culturais: é preciso um certo capital para se apropriar deles. Afinal, a cidade é feita de fronteiras, que tanto impedem que os atores sociais considerados impróprios entrem, como que os legítimos saiam e assim se desclassifiquem.”
[...]
“O enobrecimento urbano não é apenas uma política de exclusão, mas uma faceta delicada das dinâmicas urbanas, uma vez que quanto mais afirma o valor e o papel da cidade, lembra que o ar da cidade liberta apenas aqueles que sabem e podem nela viver.” (RUBINO, 2009)

Faz-se necessário, urgente na verdade de novas ferramentas educacionais que mobilizem uma interdisciplinaridade, um estudo aplicado de valores culturais que mantenham significados sem inviabilizar a construção da memória e do processo cultural que é o patrimônio, sua História, seu legado e valores. Ou seremos uma sociedade sem relato, com a História contada de um não lugar, uma não existência. Ou ainda contada, porém de forma a negligenciar aqueles que de certa forma são os responsáveis, os guardiões da nossa herança como definiu o “Antropoteto” Carlos Nelson.
Para entendermos a importância do que é patrimônio primeiro delineamos de forma superficial os valores e o que ocorre com ou sem a utilização destes. Assim podemos discutir um pouco mais sobre a herança/patrimônio em si. Mais do que um discurso autorizado (historiadores, arquitetos, engenheiros...), patrimônio é uma construção de discursos alternativos e diversificados. Assim o edifício per se não é um patrimônio nem a memória solitária, mas o que são e como se relacionam a memória, a prática e o local.
Patrimônio não é algo estático, valores estabelecidos e significados se reinventam e devem ser protegidos de um controle, de uma classe dominante. Não pode ceder a ideia de patrimônio estabelecida pela ideologia de nacionalismo, uma identidade nacional privilegia valores não perceptíveis na comunidade onde o bem deve ser “ouvido”. A imposição do federal sobre o municipal destrói a História, a memória, a identidade local, pois a identidade nacional é uma rede complexa de identidades regionais, de bairros, comunitárias, etc. Não é possível definir de cima para baixo, mas sim de baixo para cima. O todo não poderá ser estabelecido sem suas partes.
O estudo do patrimônio por vezes tende a fortalecer um discurso de legitimação e manutenção do status quo. Sendo ferramentas de poder favorecendo a eliminação de memórias, bens, culturas, povos. Um exemplo corrente é a desterritoriedade de povos indígenas e sua caça por interessados em lhe apresentar (impor) “a palavra de Deus”. Mais uma questão a complicar os debates sobre patrimônio é reduzi-lo a “propriedade”. Os especialistas reivindicam-no como seu, o poder público os assume e pouco ou nada faz. Quem controla o passado? Quem controla o sentido? Qual mentalidade o define?

“Os bens reunidos na história por cada sociedade não pertencem realmente a todos, embora formalmente pareçam ser e estar disponíveis para todos. Ao analisar como se transmite o saber de cada sociedade nas escolas e nos museus, vemos que os grupos se apropriam da herança cultural de modos diferentes e desiguais. As pesquisas sobre públicos de museus mostram que, à medida que descemos na escala econômica e educacional, diminui a capacidade de apropriação do capital cultural transmitido por essas instituições.
Embora ocasionalmente o patrimônio sirva para unificar uma nação, as desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de disputa material e simbólica entre os setores que a compõem. Consagram-se como superiores bairros, objetos e saberes gerados pelos grupos hegemônicos, porque eles contam com a informação e a formação necessárias para compreendê-los e apreciá-los e, portanto, para controlá-los melhor. Historiadores, arqueólogos e políticos da cultura definem quais são os bens superiores que merecem ser conservados. Reproduzem, assim, os privilégios daqueles que em cada época dispuseram de meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a esses bens um valor mais elevado.
Nas classes populares, encontramos às vezes certos usos refinados de suas destrezas manuais para dar soluções técnicas apropriadas a seu estilo de vida e também para jogar imaginativamente com seus recursos. Mas é difícil que esse resultado possa competir com o daqueles que dispõem de um saber acumulado historicamente, que empregam arquitetos e engenheiros, que contam com poder econômico e com a possibilidade de confrontar seus desenhos com avanços internacionais.” (CANCLINI, 2012)

 As pessoas que o usufruem, mas usufruem como memória em seu benefício, sua fruição, aprisionam-no ou libertam-no? O bem deve sustentar-se por uma base subversiva, libertadora, transcendendo apenas o patrimônio. Como no caso dos chamados “imateriais”, não surgem fortemente como ferramentas de segregação porque ainda não foram totalmente controlados pelo capital, mas não estão livres dos órgãos que se dizem protetores estarem contaminados e buscarem lobby para definir qual História contar e como contar. Não temos o passado lá atrás, ele é recriado e é necessário entendê-lo e fortalecer aqueles que querem preservar realmente o pouco que nos resta.
Tem de se evitar a todo custo uma elitização, um discurso dominante que ignora, cala, esconde o acesso e a proteção

“... às recordações familiares , às histórias locais, de clã, de familiares, de aldeias, às recordações pessoais [...], que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos.” (RANGER, 1977)

O não lugar tomado por muros que abrigam estacionamentos atrás de cenários não garante a idéia de pertencimento, mas sim a versão contada pelo crescimento desordenado e desmemoriado, que nada lembra ou preserva. Apenas cresce inexistente, alienado, desconectado. E assim a memória e as histórias se vão, abrindo espaço para mais “lugar nenhum” cheio de pavimentos e veículos a serviço do capital. A grande história, conceitos objetivos de preservação com leis, reuniões e padrões nada mais são do que sofisticação de preceitos subjetivos e seleção de micro histórias controladas, admitidas ou apagadas, pelo interesse monetário. Dinheiro é necessário a todos nós, mas quem tem o outro nas mãos?

“A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (GOFF, 2003)

Quem é o dono do passado?
Quem controla o sentido e o valor da herança (patrimônio)? (SMITH, 2006)

Referências bibliográficas:

CANCLINI, N. G. A sociedade sem relato. Antropologia e estética da iminência. SP: Edusp, 2012.

Constituição Federal. Brasília: 1988

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LE GOFF, J. História e memória; tradução Bernardo Leitão... [et al.]. –  5ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

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