Pediu


Outro dia que segue na rançosa vila...

Entre uma e outra proseada, Zé resolve ir dar mais um gole num cafezinho bem quente, já aproveita e dá um rolezinho no corredor.
Adentra a salinha abafada onde livros e baratas se confundem, desviando de umas papeladas com passos lentos, acha um copo e caminha até a mesa.
Olhando para o nada, escorrendo as últimas gotas de café da garrafa, com uma chacoalhada de leve ele tenta ao menos conseguir meio copo de café.
- Tanto esforço par...  tom... um caf..! – ele resmungou engasgando e coçando os olhos.
Escutou um barulho como se fosse um vazamento de gás, em meio a fumaça viu um tiozinho de barba e cabelo brancos que lhe entregou um pano úmido.
- Põe no rosto, já vai passar! – disse o tiozinho.
- Mas que merda é essa cara? De onde veio essa fumaça? Você acha que é algum gênio? – o Zé estava puto.
- Espero que me desculpe, mas quando disse que apareceria para um professor, me liberaram os efeitos especiais mais genéricos... gás lacrimogênio...
- Deve ter cocô nesse café! Você é um gênio mesmo? Que palhaçada! Bom, por mim você não passou, apareceu do nada... diga, veio fazer o quê?
- Vim aqui lhe atender um desejo! – disse com um sorriso no rosto, após sentar-se numa cadeira estofada toda manchada.
- Opa, mas só um? – Zé até se animou.
- Infelizmente, a verba está curta, cortaram agora mais 30%. Por isso só um desejo e gás lacrimogênio, e você teve sorte, já que no pacote também viria o som de uma galera te chamando de vagabundo e um PM dando borrachada nas suas costas, te chamando de professor comuna. Mas exclui esse “bônus”! – disse o tiozinho com cara de Paulo Freire, rindo e balançando as mãos.
- Beleza então! E como funciona? Eu peço e você vai embora?
- Isso! – disse o gênio coçando a barba ao se levantar da cadeira.
- Então... quero a partir de agora ser igual a um eleitor do Bolsonaro...
- Como é que é? – o tiozinho sentou de novo.
- Isso mesmo! Quero ser igual a quem votou no Bolsonaro. Apoiam a Reforma da Previdência, talvez porque tenham dinheiro investido em ações, contas em paraísos fiscais. Devem ser super ricos. Além de serem donos de multinacionais ou membros de famílias tipo Bush ou Rockefeller, por isso gritam pela Reforma Trabalhista. Defendem o porte de arma, pois, dinheiro não falta para se armarem em suas mansões fortalezas...
E o Zé falava e falava justificando seu pedido, e o gênio ouvia com atenção, enquanto entrelaçava os dedos sujos de pó de giz pela sua barba branca.
Quando o Zé parou para dar mais um gole no café, que já estava morno, o tiozinho com cara de Paulo Freire perguntou:
- Cara, vim aqui realizar um desejo seu, e você pede para ser um bolsominion? – ele estava indignado.
- Sim, eles vivem a realidade burguesa que muitos almejam, e eu não quero mais saber de AAP, MMR, IDESP, IDEB, PED, SED, Matriz Curricular, adolescente mandando eu me foder, sem aumento de salário, e blá blá blá de sempre. Quero ser rico como eles! - Zé foi firme.
- Táoquei meu nobre docente! – disse o velho simpático.
O velhinho gente boa se levantou e arrumou a barba, ajeitou o óculos sobre o nariz, pegou um livro, A pedagogia do Oprimido, pegou o apagador e bateu um no outro dizendo:
- Desejo pedido/Desejo realizado/O que é um peido/Pra quem tá cagado?
Entre pó de giz e a declamação do versinho, um baque foi ouvido e o Zé ficou perdido no meio da nuvem de poeira.
Quando a nuvem se dissipou o Zé não viu mais o velhinho, mas entrou em choque. Numa mão tinha uma panela, na outra um calhamaço de provas para corrigir, vestia agora uma camiseta amarela com o emblema da CBF, bermuda cáqui e sapatilha de couro.
Procurou sob a mesa, atrás do armário e nada do velhinho, chacoalhou a garrafa de café desesperadamente e nada.
Seu celular alertou que havia recebido uma mensagem, olhou e na mensagem dizia:
- Seu pedido foi atendido. Protocolo 132016102018041964
O Zé jogou a panela sobre a mesa, colocou a mão no bolso e tirou uma carteira de trabalho verde e amarela.
Olhou para as provas, centenas para corrigir, o celular apitou novamente:
- Eles votaram no bozo por burrice mesmo. Tchau querido.



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